Perguntei-me a mim mesmo – um homem de idade adulta – como pode ser a prestação na sociedade, através da actividade de voluntariado, num corpo de bombeiros.
Cada vez que se despede da família, para estar de serviço no corpo de bombeiros, a noite que avizinha-se será sempre um mistério. Poderá ser calma, envolvida numa grande melancolia, como atribulada e envolvida numa grande correria e cansaço.
Descreverei algumas situações vividas. Não serão tão significativas como a de alguns colegas bombeiros, não serão as mais emocionantes, nem tão pouco as menos emocionantes, mas são algumas que penso terem feito alguma diferença, sobretudo para alguém num determinado momento.
– Foi no final de uma noite, já começo da manhã que a meteorologia não adivinhou a tragédia que estava para chegar. Chuvas torrenciais criaram um aluvião que iria tirar algumas vidas, destruir casas e outros bens. Inesquecível a expressão das pessoas, o olhar quando percecionam que as suas casas, as casas que eram dos seus vizinhos, familiares e de pessoas que conheciam, desapareciam no meio daquela lama. Os pedidos de ajuda chegavam referindo que alguém tinha sido arrastado pela ribeira ou ficado soterradas. Eram pedidos a mais para aquilo que se podia responder. Resta a consciência de que tudo se fez para se poder ajudar. Foram dias de trabalho, de apoio não só às pessoas que foram vítimas, mas também entre pares, pois todos nós bombeiros estávamos arrasados.
– No início de uma noite, um homem na faixa dos 60, estava sentado num muro de um miradouro, de cabeça baixa, apoiada pelas suas mãos. Encontrava-se a chorar, e ao mesmo tempo que me aproximava dizia que a vida para ele não fazia mais sentido. Ameaçava-se atirar-se daí, referindo ser insuportável viver com o irmão, toxicodependente que o maltratava e lhe exigia dinheiro. Foi com algumas respostas de conforto e de promessas, de que este iria ser apoiado por técnicos especializados em função das suas necessidades, é que foi possível demovê-lo de tal ato.
– Já no avançar de uma outra noite, ao chegar à porta de uma casa, começou-se a sentir cheiro fétido e único, característico dos imensos gatos que circulavam por toda a casa. Era uma senhora acamada, que vivia sozinha. Um dilema. A filha apenas ia a casa dar-lhe de comer. Tinha problemas respiratórios, e em consequência teria de ser transportada para a urgência do hospital, situação esta que já era habitual. Sem dúvida que não poderia ficar insensível e não fazer nada. Era importante olhar para a pessoa como doente, bem como para todas as condições em que se encontrava. Tinha de respeitar a privacidade da pessoa, mas também de informar as entidades competentes, por forma a se poder melhorar a qualidade de vida desta pessoa, sobretudo para alguém tão vulnerável, numa idade já tão avançada.
– Ao chegar a uma praça, na berma do passeio lembro-me de um jovem que encontrava-se deitado no chão, embriagado. Era para ser uma festa, mas o desfecho foi esse. A maior parte dos amigos já não se encontravam no local. Os pais tinham chegado também nesse momento e estavam em pânico pensando que o filho tinha vomitado sangue, uma vez os amigos deste tinham-lhe escondido que tinha bebido bebidas alcoólicas. Não era mais do que sangria. As palavras certas são sempre difíceis de dizer, mas também são importantes e por isso tiveram de ser ditas.
– Existem também situações com desfechos mais trágicos. Recordo-me de um atropelamento, em que um jovem morreu quando passava a estrada e nada se poder fazer, de tão violento que foi o impacto.
– Num outro momento, recordo-me da expressão de uma senhora, que ia na rua. Tinha-se sentido mal e chamaram a ambulância. Estava pálida, muito ansiosa, e com medo de ficar sozinha. Ainda sinto a forma como pegou na minha mão e a segurou durante todo o transporte até ao hospital. Isso foi suficiente para a tranquilizá-la até à chegada ao hospital.
– Numa outra vez, sentado na estrada encontrava-se um jovem com lágrimas nos olhos, assustado, em consequência de um aparatoso acidente de viação, extremamente preocupado com a pessoa que o acompanhava e que estada inconsciente. Depois de ser intervir, a jovem acompanhante recuperou. Foi bom ver a expressão de tranquilidade, uma vez que este pode excluir uma situação mais dramática. Mas, nem sempre situações similares tiveram um desfecho tão feliz.
– Numa certa noite apareceu o pior, aquilo que ninguém imaginava acontecer, um inferno de fumo negro e casas como fornalhas, um clarão generalizado. O desespero das pessoas, a dificuldade de se responder a todas as situações, a dificuldade de contrariar a decisão das pessoas de não querer abandonar as suas residências, lutando contra as chamas até ao último momento. O saber que houve colegas bombeiros, que estiveram envolvidos como vítimas, é sempre difícil e gera impotência. Mas ajuda-se como se pode, nem que seja administrado um pouco de oxigénio, para poderem voltar a combater as chamas.
– Podemos também generalizar para inúmeras outras situações de pessoas que pedem ajuda, porque estão debilitados na cama e não têm como realizar as tarefas mais simples (comer, cuidados de higiene, entre outros) e a única situação é solicitarem a ambulância para poderem ir ao hospital ou alguém que caiu da cama e a esposa que pede ajuda para o levantar, porque também ela é doente e não consegue. São apenas gestos simples, mas importantes para todas estas pessoas.
Todos os bombeiros voluntários, para poderem estar presentes e ajudar os outros, acabam por sacrificar os seus familiares e amigos, privando-os do tempo que poderiam passar com estes. Sem remuneração, apenas com o intuito de ajudar os outros, defendem o futuro do país, sejam elementos do quadro ativo ou do quadro de auxiliares (estagiários) ou especialistas. A situação é comum a todos, ambos cedem o seu tempo para ajudar os outros.
Não pedem nada em troca. Por isso é importante olhar para os bombeiros voluntários, perceber o que os motiva, e não permitir que haja desigualdades e injustiças, quer seja por benesses ou direitos, independentemente do seu quadro onde se inserem.
Não se pode olhar apenas para as estruturas ligadas directamente aos bombeiros, mas compreender também as instituições públicas, pois os bombeiros voluntários também estão inseridos como cidadãos, com outras atividades laborais. As instituições públicas de forma indirecta deveriam ter alguma responsabilidade ao enquadrar os bombeiros. Mas, isso não acontece, e traz ainda maior insatisfação quando as instituições anarquizam princípios, que deveriam reger a administração pública. – Quem não conhece situações que contrariam o interesse público, como concursos que são criados em função de uma seleção mais intencional, contornando questões legais (mais ou menos), e negligenciando as questões éticas. Menoriza-se o papel do bombeiro, mas favorecem-se interesses individuais – Todos vamos conhecendo, mas vamos ficando calados e aceitando.
Lamentavelmente algo terá de mudar. Há que tratar bem e com respeito quem ajuda, e com maior justiça.
Luís Miguel Afonso Andrade