O ano de 2013 ficará sem sombra de dúvidas marcado pela época de incêndios que, durante o mês de Agosto, foi particularmente agressiva e mortífera. Na discussão pública que se foi gerando, muitas foram as vozes que apontaram as mais diversas fragilidades ao dispositivo montado para o combate e, particularmente, aos operacionais que integraram esse dispositivo. Perante as mais variadas críticas, o Portal Bombeiros.pt decidiu pedir ao Comandante Operacional Nacional (CONAC) que fizesse uma pequena análise à época que agora encerra e às diversas questões que foram sendo levantadas durante o período mais complexo do combate.
Bombeiro desde cedo na corporação das Caldas da Rainha, o CONAC José Manuel Moura foi Comandante dessa mesma corporação antes de assumir funções como Comandante Distrital de Leiria, de onde saiu para o cargo mais elevado da estrutura nacional da Protecção Civil. Não se furtando a qualquer questão, esta é uma conversa onde o CONAC demonstra que a objectividade de um alto responsável não é um factor que exclua a sensibilidade pessoal.
Num Curso de Combate a Incêndios Florestais realizado, em Maio, em Famalicão da Serra, o Professor Domingos Xavier Viegas apontava a entrada de Agosto como a fase mais perigosa em termos de incêndios. Penso que a própria estrutura estaria avisada para este facto. Assim sendo, como é que em Agosto tudo parece ter falhado? O que efectivamente falhou ou está a falhar no combate?
CONAC – Permita-me discordar da sua afirmação. O combate surge em função daquilo que a montante do mesmo falhou. No corrente ano, estivemos na presença do verão mais quente dos últimos 81 anos (IPMA). Em termos de severidade mais grave do que em 2003 e similar ao de 2005, isto em termos Nacionais, porque analisando distritalmente encontramos distritos com maior severidade alguma vez registada. Associado a estes factores o elevado número de ignições, de origem dolosa, negligente, desconhecida, entre outras, que, acontecendo de forma concentrada em determinadas regiões, exigiu ao dispositivo um esforço dantesco, manifestado no imenso trabalho que todos os envolvidos tiveram no corrente ano. Recordo que num determinado momento registámos 31 ocorrências em 35 minutos num só distrito, ou seja, qualquer planeamento num quadro destes é sujeito a um esforço e a uma resposta operacional que em certos momentos se revelou muito difícil.
Houve distritos que estiveram todo o mês de Agosto a arder continuamente, com incêndios de dimensões consideráveis. As alterações na estrutura operacional em plena entrada da fase Charlie podem ter afectado a organização do combate em alguns destes distritos?
CONAC – Não creio, recordo que mais de 80% dos elementos nomeados já pertenciam à estrutura operacional. O ano não foi fácil para quem quer que seja e seria sempre difícil para quem quer que fosse.
São numerosas as viaturas consumidas ou afectadas pelas chamas. São inúmeras as pessoas (operacionais e civis) feridas pelas chamas. Foram oito os operacionais mortos quando foram cercados pelo fogo e três os civis que morreram em acções relacionadas com o combate aos incêndios. Estamos perante situações em que se desvalorizou a intensidade ou a imprevisibilidade do incêndio? Estamos perante alguma desorganização nos Teatros de Operações? O que aconteceu nestes casos?
CONAC – O que aconteceu é o que todos pretendemos saber em função dos inquéritos que estão a decorrer, onde se inclui a reconstituição dos acidentes. Julgo, pelo relato dos diferentes operacionais envolvidos, que estamos na presença de situações muito diferentes, umas aconteceram em situação de vigilância e rescaldo, outras em ataque inicial, enfim todas elas maximizadas por uma severidade extrema e infelizmente nos anos com valores desta severidade potenciam os acidentes.
Saindo ligeiramente do presente, sabemos que as situações que culminaram com a morte dos bombeiros neste fatídico mês de Agosto resultaram de eles terem ficado rodeados pelo fogo. Sabendo nós o que se passou no passado, e refiro-me aqui como exemplo ao acidente de Famalicão da Serra por ter um pleno conhecimento dele, como é que continuamos em termos de formação de bombeiros a descurar o contacto com os locais onde esses acidentes aconteceram? É que é, conforme temos sentido nas Jornadas que anualmente organizamos, um factor essencial para evitar situações semelhantes (o caso da Ana Rita, por exemplo, parece ser muito similar ao de Famalicão).
CONAC – Como sabe a competência pedagógica na formação dos Bombeiros é da Escola Nacional de Bombeiros – ENB. Ainda assim, o Comando Nacional tem promovido, tal como em 2013, acções de treino operacional, o saber fazer. Este ano inovámos com as acções de treino operacional com máquinas de rasto, entre outras, que vai ao encontro da sua questão. Mas que não se confunda Formação com instrução, a formação é importantíssima, certifica, forma, mas é na instrução, o fazer muitas vezes que se acaba por validar através da prática o saber adquirido no processo formativo. Enquanto a Formação é responsabilidade da ENB, conforme já referido, a instrução é da responsabilidade dos respectivos Comandantes dos Corpos de Bombeiros.
A sua mensagem, datada do dia 19 de Agosto, demonstrou e deixou bem patente toda a confiança que tem no dispositivo e nos homens e mulheres que o constituem. Há um elemento que ressalta dessa mensagem e que gostaria que voltasse a frisar: o cumprimento das regras de segurança. Penso que há homens no terreno a combater incêndios que fazem sempre o que o superior hierárquico mandar, mesmo que o superior hierárquico não tenha a plena noção das condições que determinada área de actuação apresenta. Senhor Comandante, a pergunta penso que é simples: todas as ordens dadas a um operacional no TO são para cumprir com exactidão?
CONAC – Não foi só na mensagem a que se refere, na apresentação da Directiva Operacional Nacional (DON) 02 – DECIF, em Março do corrente ano, foram apresentados 6 objectivos operacionais: o 1.º Segurança das forças; 2.º Segurança das forças; e o 3.º Segurança das forças. Na referida DON vem expressa esta permanente preocupação. Quanto à questão propriamente dita, naturalmente que a organização está assente num princípio de comando único, com hierarquias bem estabelecidas, sendo certo que os Bombeiros que vão conquistando competências, vão evoluindo na sua hierarquia, para que a cada momento, qualquer responsável que esteja a assumir a função de COS, ou qualquer outra função de chefia, seja reconhecido pelos seus subordinados como competente e capaz de liderar a situação em causa.
A organização e rapidez de cooperação supradistrital ficou fortalecida com a inclusão e criação da figura dos GRUATA. Há, no entanto, uma grande incidência de incêndios em alguns dos distritos que fornecem esses grupos. Este facto levou a que os distritos de origem ficassem fragilizados no seu combate interno uma vez que os seus meios poderiam ser solicitados para outros distritos?
CONAC – Não, isso não aconteceu. Como deve calcular um dos trabalhos deste Comando é dotar cada teatro de operações dos meios necessários para ajudar a suprimir cada uma das ocorrências. Na projecção de meios nacionais e no balanceamento que estava em análise permanente essa variável estava sempre considerada, sendo certo que temos uma matriz assente num conjunto de distritos que têm uma capacidade exportadora de ajuda significativa, sendo que outros com uma necessidade importadora de ajuda mais significativa. Em 6 distritos (Viana do Castelo, Vila Real, Viseu, Porto, Guarda, Bragança) concentraram-se:
- 83 % do total da área ardida;
- 88 % da área ardida de matos;
- 61 % do total das ocorrências.
Neste momento o grande foco de discussão parece centrar-se na necessária e velha conversa sobre políticas de organização florestal. Uma pergunta muito simples e que pode ajudar a esclarecer os leitores: o Comando Nacional da ANPC já foi ou tem conhecimento de que alguma vez tenha sido (mesmo no tempo do SNBPC) ouvido acerca desta questão? Se o foi, alguma das recomendações foi seguida pelas entidades florestais competentes?
CONAC – Não, nunca fui e não tenho conhecimento de que alguma vez tenham sido.
Sei que acompanhou com muita atenção todas as situações difíceis vividas no terreno por todos os homens e mulheres. Sei também que mantém uma preocupação e uma comunicação constantes com todos os que ainda se encontram hospitalizados. Quero, no entanto, pedir-lhe que deixe aqui uma mensagem pública aos milhares de operacionais que lutaram durante esta difícil fase e, especialmente, àqueles que ficaram feridos.
CONAC – A história dos Bombeiros Portugueses inspira-se na coragem, abnegação do bombeiro português, expressão de cultura e criatividade de um povo determinado nos seus princípios e convicções de fazer mais e melhor.
Todos, Homens e Mulheres, que abraçaram esta nobre causa, devem ser respeitados e admirados por todos nós, porque personificam o que de melhor tem a Humanidade, pelo que aqui deixo ficar o meu sincero reconhecimento a todos os valorosos Soldados da Paz que sempre deram o melhor de si, e muito particular a todos quantos sofrem nos hospitais em virtude do difícil ano de 2013 que a todos colocou níveis de entrega de excelência.
Bem hajam. Obrigado.
Entrevista conduzida por Daniel Rocha.