Falta de vegetação para segurar terras pode levar a inundações nas zonas onde ocorreram os maiores fogos. Xavier Viegas elogia resposta das autoridades, mas lembra que continua a haver “pouca consciência das pessoas”.
Um inverno muito chuvoso pode criar graves problemas nas áreas mais afetadas pelos incêndios do verão. Sem vegetação para segurar a terra (os fogos queimaram um total de 150 mil hectares) uma precipitação intensa pode provocar grandes aluimentos e infiltrações nos lençóis de água. Este é o receio de Xavier Viegas, especialista do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais. E também dos bombeiros que já estão a preparar-se para as eventuais consequências de dias com chuva acima da média.
Com a fase mais crítica de incêndios a terminar hoje – a Charlie que dura desde 1 de julho – acaba também o período mais problemático da década, contabilizando uma área ardida que mais que duplicou a média dos últimos dez anos, totalizando 150 364 hectares queimados (o histórico aponta uma média de 70 862), segundo o relatório provisório do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Um valor a que apenas se aproximou o ano 2013 (149 mil hectares queimados), embora ainda longe de 2003 (400 mil hectares) e 2005 (340 mil).
“Metade do flagelo já passou, agora vem a segunda parte”, refere Rui Silva, presidente da Associação Portuguesa dos Bombeiros Voluntários (APBV), temendo o impacto da decomposição orgânica da matéria que ardeu. “Vamos ter grandes quantidades a correr para os rios, deslizamentos de terras, erosão dos solos. Vêm aí grandes prejuízos ambientais com efeitos prolongados no tempo”, sublinha o dirigente, enquanto o presidente da Liga dos Bombeiros, Jaime Marta Soares, também prevê um inverno com “situações muito graves”.
Lamenta já não haver tempo para erguer infraestruturas habilitadas a desviar as águas da chuva das zonas de maior risco. Ou seja, as mais fustigadas pelas chamas. Dá o exemplo da Madeira, mas também receia derrocadas para localidades como Arouca ou São Pedro do Sul. “Todas as zonas de montanha, com geografia acentuada, que ficaram sem vegetação estão em perigo”, sublinha, como consequência dos cerca de 15 mil incêndios registados em Portugal entre 1 de janeiro e 30 de setembro.
Grande percentagem dos fogos (5074) ocorreram em agosto, tendo queimado 106 mil hectares de floresta, obrigando a mais de uma dezena de evacuações, como aconteceu nos concelhos do Funchal, Ponte de Lima, Sardoal, Arcos de Valdevez, São Pedro do Sul ou Monchique. No mês passado ainda arderam 27 mil hectares.
ANPC só avalia no final do ano
Na fase Charlie houve 177 grandes incêndios (os que consomem mais de cem hectares), tendo a Proteção Civil mantido o estado de alerta especial durante 45 dias. O DN contactou a Autoridade Nacional de Proteção Civil questionando as razões que justificam que a área ardida tinha batido o recorde da década, mas a ANPC prefere aguardar para fazer o balanço no final do ano ao lado da GNR e ICNF. Quer avaliar o que “correu melhor e pior”, segundo fonte oficial do organismo, admitindo que “há muitas variáveis que se cruzam”, o que é complicado transmitir já uma posição institucional.
E há lições a retirar deste verão quente? Xavier Viegas acha que sim. Elogia a resposta do sistema de socorro, recordando como em 2003 e 2005 se instalou um clima de mal–estar da população para com os bombeiros, o que não sucedeu este ano, mesmo com as vítimas dos incêndios onde o socorro não conseguiu chegar. “O problema está na pouca consciência das pessoas que fazem fogo no meio de verão, em dias críticos no meio da floresta”, refere, defendendo que “seja feita alguma coisa” junto da população que permita preparar as várias comunidades para enfrentarem uma situação de catástrofe.
Isto é, além de evitar comportamentos de risco, limpando florestas e criando faixas de contenção, este especialista defende que os próprios moradores deverão estar sensibilizados para a entreajuda, a fim de minimizarem alguns dos casos mais graves ocorridos este ano. “Custa a perceber como é que o fogo surpreende o Funchal, entra na cidade e mata três pessoas”, exemplifica.
Já para os bombeiros, a explicação para a quantidade de área ardida deve ser tripartida entre os ciclos naturais do crescimento das espécies arbóreas, o desordenamento da floresta e o abandono dos terrenos agrícolas.
“Hoje temos o grande flagelo do interface urbano-florestal, que foi o que ardeu mais e a onde a Madeira é um caso flagrante”, diz o presidente da APBV. Por isso Marta Soares assume que o diagnóstico está feito, mas diz que “não se tem combatido a doença”, lamentando que a floresta continue por cadastrar. “Tem de ser aplicada a lei do ordenamento do território florestal, para obrigar todos os proprietários e familiares a manter as áreas limpas”, diz.
Fonte: DN