Tripulantes de ambulâncias ou operadores, prestam socorro em situações de doença ou acidentes. Sempre graves para quem telefona, nem sempre para quem ocorre ao local. Acabam de ver reconhecido o direito a uma carreira e a subsídios de desgaste e risco
“Aqui, começam a salvar-se vidas.” Sente quem atende a chamada do 112. “Saber que se faz a diferença na vida de alguém”. “Ajudar os outros”. “Realização pessoal e profissional” “Não é pelo salário”. Acrescenta quem recebe a ordem de socorro da central e agarra na ambulância para acudir à doença ou ao acidente, sempre graves para quem telefona. Mas muitas vezes por solidão, também por desinformação, verifica o técnico do INEM.
“Há muita gente só. Casais de idosos que só se têm um ao outro. Já os conhecemos. Avaliamos a situação e levamos a pessoa para o hospital. O que é que vamos fazer? É a única viagem que fazem em muito tempo. É triste. E quando morre um deles?” Cláudia Valente, 39 anos, técnica de emergência do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), descreve uma das particularidades dos bairros lisboetas onde estão sediados, a base 2, junto à Avenida de Roma e que inclui a Baixa. Muitos prédios sem elevador, escadas para subir e gente a carregar em macas.
A população idosa é aquela com que Cláudia mais lida diariamente e que a preocupa, não apenas os que vivem sós mas também “os que estão em lares sem ninguém à noite com conhecimentos de suporte básico de vida”, sem saber o fizer perante uma paragem cardíaca, por exemplo. Mas as crianças afetam todos. “As situações que não esqueço envolvem pediatria”. Nuno Nova, 36 anos, recorda a criança de dois anos que se afogou numa banheira e acabou por morrer. Nem aí recorreu ao apoio do psicólogo do INEM. A sua estratégia é apagar tudo quando deixa o doente no hospital. Nem sempre.
“Não sei se foi por ter sido pai há pouco tempo, marcou-me especialmente uma criança de 13 meses eletrocutada. Conseguimos que recuperasse no local e foi evacuada para o Hospital de Santa Maria [Lisboa], só que tinha grandes lesões. Morreu quatro dias depois”. José Robalo, 40 anos, não cumpriu a regra do Nuno, teve de saber o desfecho. Também porque trabalha num meio pequeno, Ponte de Sor, como tripulante de uma ambulância SIV, de Suporte Imediato de Vida. Viaturas com um enfermeiro e um técnico de emergência e que começaram nos meios rurais por estarem afastados dos hospitais. E assim continuam embora Lisboa já tenha uma, por exemplo.
O desgaste psicológico, o esforço físico para transportar doentes, os locais a que se dirigem e que correm o risco de agressão. “Já tive de sair de um bairro escoltado”, recorda Nuno Nova. “A situação que podia ser mais complicada foi o tiroteio na Ameixoeira [há um mês e que feriu três polícias e duas mulheres], mas quando chegámos já estava controlado pela polícia.” Conta Lígia Matos, 29 anos, que entrou para o INEM em janeiro.
Carreiras e meios disponíveis
Situações que contribuem para que estes profissionais exijam há anos outras condições, nomeadamente uma categoria profissional e subsídios de desgaste rápido e de risco. O que finalmente foi reconhecido. É criada a carreira de técnico de emergência pré-hospitalar para os tripulantes de ambulâncias e operadores dos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), mas estes estão menos entusiasmados com a mudança do que os técnicos de emergência. Está por clarificar a validação dos protocolos e a formação exigida. O futuro é administrarem medicamentos e fazer exames mais complexos como um eletrocardiograma, sempre com a supervisão de um médico. “Quem ganha mais é o utente, vai ter uma rede de cuidados mais abrangentes”, diz José Robalo.
Os técnicos de emergência tripulam em geral uma ambulância SBS (Suporte Básico de Vida), também a conduzem, avaliam a situação do doente, as queixas, as doenças, o que comeu, os medicamentos que toma. E testam os parâmetros vitais: pressão arterial, pulso, frequência respiratória frequência cardíaca, saturação de oxigénio, temperatura e glicemia.
Se o caso é mais grave enviam os dados para o CODU (Lisboa, Porto, Coimbra e Faro) e que acionam novos meios de socorro. É aqui que entram os operadores de telecomunicações de emergência como Carlos Cintra, 50 anos, também coordenador de turno. Têm de avaliar pela discrição os meios a enviar, acalmar quem telefone, descodificar o que diz. “É complicado. Há uma falta de cultura da população, não sei se é por desinvestimento ou desconhecimento. Não percebem que todas as perguntas são para prestar um melhor serviço.”
Carlos já esteve nas equipas de rua, deixou quando subir e descer escadas com uma maca se tornou pesado, além de que fuma. É o que acontece quando se avança na idade, ir para outros departamentos.
Quando a situação é grave aciona a VMER (Viatura Médica de Emergência e Reanimação), que transporta uma equipa médica ao local onde está o doente. Acaba de festejar 25 anos da entrada ao serviço no INEM. Há, ainda, o Helicóptero de Emergência Médica, evacuação de doentes, e a Mota de Emergência Médica, para a cidade.
Carlos Cintra entrou para o INEM após o serviço militar, em 1989. Estava nas transmissões e concorrer a operador de telecomunicações foi natural. “Não sabia onde me vinha meter, só na formação é que percebi realmente o que era. Nunca me arrependi. Sinto-me realizado. Aqui, começam a salvar-se vidas, o que depois é complementado com as equipas de rua. É o que me mantêm e faz com complete 27 anos dia 15. E nem sei trabalhar sem ser por turnos.”
Bombeiros é a estreia da maioria
Cláudia tem um percurso diferente da generalidade dos colegas e que contactam pela primeira vez com os cuidados pré-hospitalares através dos bombeiros. Embora se encontrem muitos outras profissões, como professores, mecânicos, enfermeiros. Era jurista e trabalhava em Direito da Família, área que gostava. Sente que a “advocacia atravessa momentos complicados” e, “por problemas pessoais”, mudou para uma profissão que admirava, também porque a bioética é um tema que gostaria de aprofundar no futuro. As leis já as conheces faltava-lhe a prática em saúde. Concorreu e está no INEM há três anos. “Aos 30 e tal anos descobri a minha vocação. Estava cá há sete meses quando tive uma proposta para um gabinete jurídico e não aceitei. O meu futuro é esta casa, evoluir cá dentro.”
Sente-se “útil e mais preenchida”. E nada paga o orgulho com o que ouve os dois filhos dizerem: “A minha mãe trabalha no INEM.” Mas paga os horários por turnos – e a dificuldade em ter uma vida social com a família e amigos, que trabalham de segunda a sexta , das 09.00 às 17.00. Também não é fácil conciliar com a vida familiar, mas tudo se consegue graças ao bom relacionamento que ficou depois de se divorciar do pai dos filhos.
Nuno Nova é do mesmo curso de Cláudia Valente, entrou em 2013. Eram 4200 candidatos para 100 vagas. Trabalhava no Bombeiros Voluntários de Loures, onde também fazia voluntariado, o que é obrigatório. Ganhava 900 euros mensais, vivia em casa dos pais, com cama e roupa lavada. Passou a receber 750, a pagar renda de casa.
“Foi uma opção de vida, o que nos move é o gosto pela emergência hospitalar. Nos bombeiros até apanhava mais situações emergentes, basta pensar nas autoestradas A8 e A9 que passam no concelho, nos acidentes, mas queria evoluir e dedicar-me a isto a 100%.” Nuno justifica ainda: “Em Lisboa, acaba por haver serviços que na verdade não são de emergência, mas é diferente. Nos bombeiros o trabalho é mais variado, acidentes, incêndios, etc, faz-se um pouco de tudo. Quem gosta da área pré-hospitalar é aqui que pode evoluir.”
Nuno já tripulou uma SIV. “Nasceu nos meios rurais, quando se têm de fazer distâncias muito grandes, o doente tem que ter outro tipo de transporte, mais especializado. Enquanto técnicos perdemos autonomia, há um enfermeiro e é ele que tem a decisão. As situações é que são diferentes.”
Hoje Nuno Nova faz equipa com Lígia Matos, as equipas podem mudar todos os dias. A novata que veio da Lousã e para lá quer regressar. Os colegas dizem-lhe que demorará uns três anos, depende da abertura de concursos. Este ano concorreram 3700 pessoas para 85 vagas, dez para o Norte, dez para o Centro, as restantes para Lisboa. É onde mais lugares, razão pela tantos iniciam a profissão na capital.
Lígia acabou o contrato na Força Aérea, como mecânica e condutora. Também concorreu a guarda prisional, acabando por ficar no INEM. Ganhou-lhe o gosto e vê-se daqui a 20 anos numa SIV em Lousã, onde foi também pertenceu aos bombeiros. Tem a sorte de morar na casa de uma tia e não paga renda. De contrário, teriam de ser 250 euros de aluguer, mais 150 para alimentação, tanto como o combustível, mais telemóvel e outras despesas. Resta pouco ao fim do mês.
A solução é ter duplo emprego como fez José Robalo quando deixou os Bombeiros Voluntários de Idanha-a-Nova para trabalhar no INEM em Lisboa, mas sentia que “estagnava”. “Estava nos bombeiros desde 1991, senti necessidade de procurar um novo mundo, de ter novos projetos”. E também de satisfazer um sonho de criança. “A minha entrada nos bombeiros foi a minha prenda de anos. No dia em que fiz 16 anos [a idade mínima permitida], o meu pai disse que a prenda era a inscrição nos bombeiros. Inscrevi-me logo.”
Duplo emprego entre 2008 e 2013 com duplo emprego: de manhã era técnico de emergência pré-hospitalar numa instituição bancária e à tarde e à noite no INEM. “Foi duro”. Conheceu a mulher, enfermeira no INEM, e acabou por ir para a terra dela, Ponte de Sor, onde diz ter mais qualidade de vida. “Trabalhar em Lisboa é verdadeiramente uma escola, quem está de manhã não para. Em Ponte de Sor somos chamados para diferentes situações, não mais que dois serviços dadas as distâncias, e em todas elas sentimos que podemos fazer a diferença, mas o trabalho é menos duro. E a mentalidade da população é completamente diferente, só telefonam em último caso. E um ambiente mais saudável”.
O ambiente de trabalho entre colegas é que é bom, sobretudo quando se juntam na sala de espera, partilham histórias e comida. E brincam com as situações para descontrair. E dá sempre para fazer trocas, como o Nuno que pode junta os turnos para poder viajar. Ou como a Lígia, a tentar fazer uma troca ir a casa no Dia da Mãe.
Fonte: DN