Sara Fontes, 32 anos, acaba de chegar de Vila Nova de Cerveira, onde esteve numa missão de 48 horas com o Grupo de Reforço de Ataque Ampliado (GRUATA) de Coimbra no maior incêndio deste ano.
Bombeira de primeira, está na corporação dos Voluntários de Brasfemes, no concelho de Coimbra, desde os 14 anos. “Só ficámos 38 horas”, diz, com o sorriso de quem acabou o que tinha para fazer antes do tempo. Os grandes olhos castanhos brilham. O verniz cor-de-rosa já só está nas unhas de uma mão. “Cheguei, pus a farda a lavar e fui trabalhar”, justifica. Sara é técnica de emergência no INEM e, no distrito de Coimbra, a única formadora em técnicas de desencarceramento. Licenciou-se e tirou o mestrado em Ciências da Educação. “As mulheres são iguais aos homens. Somos bombeiros e bombeiras. Temos uma missão.” Que fique já o aviso. Para Sara, não há diferenças. E se às vezes a olham de soslaio porque é mulher… “Ponho a minha ‘cara 33’, cara de má, e faço o que tenho a fazer.”
Esta não foi a primeira vez que esteve fora. Andou mais de 200 quilómetros para ser agulheta no incêndio de Cerveira. Para trás, ficaram a mãe, viúva há um ano, a irmã gémea e o irmão, de 25 anos, também bombeiro. “A minha mãe começou logo a chorar, mas eu disse-lhe que estava tudo bem, que não ia para o meio do mato.” Não é verdade. Na televisão, as imagens mostravam um monstro enorme de fumo negro. Um Adamastor. Mas à sua frente, Sara, que até é de estatura pequena, agigantava-se como uma criança que tem a força de quem acredita que é uma super-heroína. E é.
VOLTAR SEMPRE
Habituada à emergência, a situações-limite, Sara é uma mulher prática e não gosta de “esperar pelo fogo”. Em Brasfemes, é na maior parte das vezes chefe de equipa e, quando chega ao terreno, a ordem é: “Começar para acabar.” E o risco? “Temos de ter noção, e a segurança é a prioridade, até porque se nos magoarmos não podemos ajudar os outros, mas não penso muito nisso.” Pequenina, com os olhos arregalados e quase afundada na cadeira de plástico nas traseiras do quartel, Sara diz que não tem medo. E não tem. Não o diz por dizer, sente-o.
“Penso positivo e volto sempre.”
A fórmula tem resultado. Nos quase dois dias que esteve em Cerveira, só dormiu cinco horas. “No fim, quando o incêndio já estava extinto, descalcei as botas e deitei-me no banco do carro.” Foi um luxo, admite. Como era “das mais velhas”, teve direito a uma cama melhor, os outros dormiram no chão. Quando sai em missão, leva sempre uma mochila com uma muda de roupa, água, produtos de higiene. O maior problema é a falta de privacidade.
“Não se consegue estar sozinho e a questão da higiene é o que custa mais.” Por isso, quando volta à casa da mãe, em Brasfemes, não pode faltar “um bom banho”, para tirar aquele cheiro a terra queimada que se entranha na roupa, no corpo, na alma… É isso e uma refeição à séria. “Comemos pouco, as refeições são providenciadas pela Proteção Civil, mas nem sempre podem ser quando queremos.” Às vezes, aparecem uns “anjos da guarda, com água fresca, um café, uma palavra de ânimo”. Para os bombeiros, “uma população que não nos ajude dificulta tudo, mas na maior parte das vezes as pessoas são boas”.
45 EUROS POR 24 HORAS
O assunto começa a ficar sério. Sara hesita, mas avança: “Às vezes julgam-nos porque não nos conhecem, não sabem.” Os olhos de Sara são agora duas pequenas avelãs, mais baços. “Nós não esperamos nada, sabe? Mas somos voluntários profissionais, temos muita formação. Devíamos ser compensados. Também temos contas para pagar.”
Durante o verão, os bombeiros que integram as ECIN (Equipas de Combate a Incêndios) recebem, a título de compensação, 45 euros por 24 horas de serviço. Sara diz que o valor, 1,87 euros à hora, “é simbólico” e “não paga o esforço”. Para Jaime Marta Soares, presidente da Liga de Bombeiros Portugueses, este número é “muito irrisório”.
“Os Bombeiros são um hobby, tenho o meu trabalho”, passa à frente no tema, sem certeza nenhuma porque, no fundo, sabe que este hobby é antes uma forma de estar na vida. Esta bombeira de primeira começou pela fanfarra dos Bombeiros de Brasfemes. Era majorete, “uma das meninas que vão à frente a fazer de guia, com um bastão cheio de fitas”. Hoje continua assim, na linha da frente.
DO MAL O MENOS
Quando, no domingo à noite, Sara ficava a saber que a próxima missão seria rumar a Vila Nova de Cerveira, o namorado, também ele bombeiro, mas em Sintra, preparava-se para voltar a casa depois de combater no incêndio de Viana do Castelo. “Nem nos vimos, mas já estamos habituados. No verão tiramos férias um do outro.” Conheceram-se há cinco anos, na Escola Nacional de Bombeiros. Ele era formador, ela formanda. Com o tempo, aproximaram-se. “Isto é uma vida de camionista”, desabafa. Deixar os Bombeiros de Brasfemes é que não. “Consigo conciliar tudo. Já trabalhei no Porto e nunca deixei de ser bombeira aqui”, assegura.
Debaixo das botas, que agora engraxa, já arderam milhares de hectares de floresta. Mas custa sempre. Na segunda-feira, 10 de agosto, à chegada a Vila Nova de Cerveira, viu um incêndio que já lavrava há mais de dois dias. “Aquilo estava feio?”, perguntamos. Acena que sim. Não diz, é como se ainda estivesse a guardar segredo para a mãe não saber o que enfrentou. “Temos a responsabilidade de ajudar e de minimizar.”
Para Sara, as coisas são assim: do mal, o menos. As chamas de Cerveira começaram no sábado na freguesia de Candemil e Gondar. No domingo, passaram para o concelho de Caminha, e só pararam na terça-feira. O fogo ameaçou habitações. Mais de quatro centenas de operacionais, apoiados por veículos terrestres e meios aéreos, lutaram contra este Adamastor que íamos vendo pela televisão. “Estava tudo muito organizado e a equipa era muito boa. Quase nem falávamos, não era preciso, cada um sabia o que estava ali a fazer”, conta, entusiasmada.
FARDA ENGOMADA
A conversa já vai longa e faz questionar se esta mulher de armas é mesmo assim: forte, corajosa, rígida, ou se tudo isto não é mais do que uma forma de sobrevivência. Desta vez, a bombeira não hesita. “É personalidade. Sou mesmo assim.”
“Há coisas que me fazem chorar, o que me magoa mesmo são as injustiças”, revela. “Mas chorar, só no fim, quando tudo está resolvido.”
O castanho dos olhos já lhe brilha outra vez. Está-lhe na memória o dia em que um colega teve um acidente e caiu do carro à saída do quartel. “Tive de o socorrer. Cortar-lhe a farda foi o pior, é ela que nos torna especiais, tem um simbolismo muito grande”, conta, em tom mais baixo. Talvez por isso faça questão de ter a sua sempre pronta e bem engomada.
“Não podemos perder a nossa identidade, e eu sou uma mulher, sou feminina, gosto de me arranjar. Quando uso a farda de gala, ponho uma maquilhagem, um penteado…” Faz uma pausa e olha outra vez para as unhas.
Pouco depois, retoma para dizer: “Tudo isto só é possível porque tenho amigos, que me ajudam.” É então que fala do trevo de quatro folhas que tem numa pulseira oferecida por uma amiga. “É para dar sorte, foi comigo para Cerveira”, explica.
LEMA DE VIDA
“Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe.” É este o lema de vida de Sara. Relativiza, simplifica, racionaliza a toda a hora. Tudo porque ajudar os outros lhe faz bater o coração. “Hoje ajudo-os eu, amanhã são eles a mim, mas eu tenho de ter a certeza que estão prontos para o fazer”, remata. Dá formação gratuita na corporação de Brasfemes e em troca recebe um carinho que não quer perder. “Quando chegamos de uma missão, os colegas vêm ver-nos chegar, mostram a sua preocupação, ajudam-nos a repor as viaturas, isso é muito bom”, conta. Talvez até venha a ser comandante.
No futuro, pensa ir viver para Sintra, com o namorado, ser mãe, “se calhar”, ser bombeira, de certeza. Para já, e porque a mãe precisa, vai continuar onde nasceu. “Já está decidido. Hei de ir. Se não for mais depressa, é mais devagar, mas vou.”
O dia está a chegar ao fim. Depois de 38 horas de missão, da viagem de Cerveira a Brasfemes e de uma noite no INEM de Coimbra, o cansaço começa a ser mais visível.
É então que toca a sirene do quartel. Sara bate, de um pulo, com as botas já engraxadas no chão. É então que se lembra de que não está de serviço e sorri. “Só tocou uma vez, é emergência, não é incêndio.” Volta a sentar-se, descontraída.
“É o hábito”, justifica. Não é, não. O que se passa é que ela sabe que esse monstro terrível que ameaça devorar casas não é de contos de fadas que acabam sempre bem. É mais aquele Adamastor que no Cabo das Tormentas pode engolir caravelas de corajosos. Mas nós somos um país de marinheiros, no mar ou em terra, e não podemos fugir disso. Desta vez, o Adamastor só tirou o verniz cor-de-rosa das unhas de Sara, mas ela já tratou de o repor.
(Fonte: CM)